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Rua Onze . Blog

Aki ó-matsu Hito ó-mayowasu Momiji-kana!...

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Aki ó-matsu Hito ó-mayowasu Momiji-kana!...

Macau, 1937 (IX)

blogdaruanove, 11.12.09

 

Por entre os aromas, as cores e as vozes, o rosto de Liang ergueu-se. Uma sorridente lua cheia, pairando por instantes sobre a mesa, iluminando o enlevado olhar do convidado. Um olhar que se perdia nos movimentos suaves que a faziam levitar e a levavam para além da sala.

 

Regressou pouco depois, acrescentando solenidade ao sorriso quando entregou uma pequena caixa de madeira a Tchang. O ancião recebeu-a com cerimónia, sorrindo também para Liang. "Obrigado, Xue", disse. Estranhou aquele tratamento, que misturava duas línguas e lhe lembrava o chamamento que pela primeira vez o levara a entrar na loja.

 

Tchang estendeu então as duas mãos para o convidado, oferecendo-lhe a caixa com grande solenidade. Recebeu-a, aguardando as palavras que deviam acompanhar a oferta, como era tradicional. E as palavras vieram, breves e sincopadas. "Para que deixe a sua marca onde quiser e quando quiser. Um pequeno sinete. Por favor aceite-o como prova da nossa amizade."

 

Aceitou em silêncio, sorrindo e baixando levemente a cabeça. "Aceito, com grande regozijo pela nossa amizade", disse depois. E nada mais acrescentou. Sabia que o resto da satisfação deveria ser traduzida por gestos e expressões de admiração perante o objecto.

 

Notou que a caixa era folheada a madeira de carvalho. Madeira de veios largos e longos, madeira de árvore velha. Poderiam ter utilizado qualquer uma das muitas e preciosas madeiras orientais. Mas não, haviam escolhido precisamente o carvalho. Madeira que teria vindo da Europa, ou então do Japão. Não era comum na China. Sabiam o seu significado para os europeus.

 

Levantou cuidadosamente a tampa. No interior, entre a sumptuosidade de um veludo carmim e o aroma da cânfora, estava o sinete. Uma peça delicada, com um dragão cinzelado em espiral. Símbolo da longevidade. Levantou os olhos para Tchang, que leu o agradecimento no seu olhar e lhe disse: "Está em branco, para que possa colocar as iniciais que entender, quando entender".

 

Lembrou-se do leque em branco que lhe haviam oferecido no Sibajak e das palavras que acompanharam a oferta: "Um leque destes lembra-nos o resto da nossa vida, os anos que ainda temos para viver, aquilo com que queremos preencher esse espaço. Sempre poderemos escolher o tecido e a decoração a nosso gosto..."

 

Liang olhava-o também. E assim ficou o seu olhar, suspenso entre Tchang, o sinete e Liang. "Em que estás a pensar?", perguntou a si próprio. Não, não queria pensar, nem queria sentir.

 

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Macau, 1937 (VIII)

blogdaruanove, 09.11.09

 

À entrada, estendeu a Tchang a tacinha de prata, que a recebeu juntando as mãos, honrando a oferta como se honrasse o convidado. Delicada e atenciosamente, virou a sampana para ver o fundo da taça, onde estava a imagem de Chang Kai-Chek. "Aah! Wai Kee...", murmurou, sorrindo, ao ver a marca do ourives.

 

Fez depois um gesto a uma serviçal, entregando-lhe cerimoniosamente a taça. Esta lavou-a uma e outra vez, secando-a e enchendo-a com uma bebida cor de mel. Entregou-a de seguida ao convidado. Tchang acenava-lhe levemente, sugerindo que a aceitasse. "Seja bem-vindo! O que era seu passou a ser meu, a nossa refeição passará a ser a sua."

 

Bebeu. Era um líquido fino e adocicado, que escorria tão facilmente como a água. Devolveu a taça à serviçal, que de novo a lavou e encheu, entregando-a a Tchang. Só então Liang se aproximou, saudando-o respeitosamente. O seu olhar deixava transparecer uma alegria íntima que mal se notava no sorriso. Recebeu o envelope vermelho das mãos do convidado com o recato que se esperava dela, obtendo antes, com o olhar, a aprovação do tio-avô.

 

Outra serviçal veio receber o terno enfeitado que ele também acabara por trazer, levando-o para a cozinha. Enquanto a porta se abria e fechava, os aromas da comida chegaram à sala e a vertigem que sentira nas ruas voltou. Tudo se misturava, tudo era indefinido, nada tinha um só cheiro.

 

Mal conseguira chegar à mesa e mal se sentara quando a comida começou a ser servida. Carnes preparadas de mil e uma maneiras. Não conhecia a maior parte dos pratos. Foram-lhe dizendo. Capela de porco, galinha assada, galinha kai-pin, inhame chau-chau com lap-yôk, lacassá, ló-pak-cou, margoso lorcha, missó cristão, pato pák-sáp, chau-chau de pele. Uma explosão de vapores, de aromas e de cores.

 

A vertigem continuava com os vegetais, o peixe e o cheiro de balichão nos temperos. Couve recheada, couve-flor frita, chai de bonzo, yeu pin, casquinha de caranguejo. E prolongava-se com os doces. Genetes, doce de camalenga, fatias da china, doce de cha-cha, saransurável. Ainda não provara nem metade de tudo aquilo e já se sentia satisfeito.

 

Mal seguia as conversas, mal recordava as palavras. Apenas via com clareza expressões de satisfação e sorrisos nos rostos que o rodeavam.

 

 

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Correspondência de Wenceslau de Moraes (V)

blogdaruanove, 07.07.09

 

"Muito desejoso de satisfazer o teu apetite, confesso-te no entanto que a coisa é difficil: os bilhetes que mando á Chica foram comprados no Japão, estão a acabar, e em Macau não se encontram; com respeito a papel japonez, tambem o melhor foi adquirido no Japão; em Macau ha algum, mas não agora, pois todas as lojas de quinquilharias se fecharam, em consequencia da peste que aqui está reinando, como deves saber pelos jornaes.

 

Chegou isto a tal ponto, que é já um problema difficil o saber-se onde se ha-de ir comprar um kilo de batatas; Macau está quasi deserto. Voltando ao assumpto, para te ser agradavel tanto quanto possivel, faço um volume de algum papel que reservava para mim, junto-lhe um resto de bilhetinhos, e mando-te tudo como amostra registada. Ficas contente?"

 

Excerto de uma carta endereçada a sua irmã Emília Regina Perpétua de Moraes (?-1905), enviada de Macau e datada de 04 de Junho de 1895.

 

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Correspondência de Wenceslau de Moraes (II)

blogdaruanove, 02.07.09

 

Macau, c. 1936.

 

"Vou vivendo como sempre, sem novidade. Agora com frio, porque chegou o inverno a Macau; inverno mais rigoroso que o de Lisboa, muito mais humido, muito mais triste, e que se sente muito mais, por se succeder a um verão de escaldar. No entanto, ha dias, poucos, lindos."

 

Excerto de uma carta endereçada a sua irmã Emília Regina Perpétua de Moraes (?-1905), enviada de Macau e datada de 23 de Novembro de 1888.

 

 

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Correspondência de Wenceslau de Moraes (I)

blogdaruanove, 01.07.09

Última fotografia conhecida de Wenceslau de Moraes, registada em Maio de 1929.

 

A correspondência de Wenceslau de Moraes (1854-1929) tem vindo a ser divulgada regularmente desde o seu falecimento (cf. http://blogdaruanove.blogs.sapo.pt/117595.html), com particular destaque para as Cartas do Japão, publicadas por Armando Martins Janeira (1914-1988) na década de 1970.

 

Contudo, as edições das décadas de 1930 e 1940, que não têm sido alvo de reedição, contêm dados particularmente interessantes sobre o autor e a sua bibliografia. De entre essas, as Cartas Íntimas, publicadas em 1944, apresentam particular interesse.

 

Não pelas indiscrições da eventual intimidade romântica ou amorosa que o título pode sugerir, pois são cartas dirigidas a irmãs, cunhados e sobrinhos, mas pela simplicidade genuína de vulgares textos epistolares que não se destinavam à divulgação editorial e retratam o quotidiano de Moraes sem qualquer artificialismo ou pretensão literária.

 

São ainda particularmente curiosas por retratarem a estadia do autor em Macau e no Japão sem nunca deixarem transparecer quaisquer detalhes sobre a sua vida íntima, os seus amores, as suas relações conjugais, ou os seus filhos.

 

Ao longo de todo este mês transcrever-se-ão pequenos excertos de algumas dessas cartas, procurando revelar detalhes da vivência de Moraes relacionados com a sua descoberta pessoal do Oriente em paralelo com a sua visão, e o seu distanciamento, de Portugal.

 

 

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Macau, 1937 (VII)

blogdaruanove, 10.04.09

 

As ruas que conseguia distinguir de sua casa haviam desaparecido. Eram agora um conjunto vivo de linhas onduladas e estonteantes, saindo de corpos comprimidos, soltando sons desencontrados. Os diálogos pareciam solitários monólogos perdidos entre a neblina que saía de todas aquelas bocas. Estava a ficar frio. Voltou a ter arrepios. Nunca sentira frio nas ruas de Macau, nem mesmo em Janeiro, quando as noites haviam chegado a ter temperaturas negativas.

 

Olhava atónito para o hálito translúcido e apressado que acompanhava cada frase. Não se arrepiava por causa do frio. Arrepiava-se por todos aqueles sons que lhe causavam estranheza. Parecia ter esquecido todas as frases e todas as palavras aprendidas até ali. Aquelas pessoas falavam agora de coisas de que nunca falavam ao longo do ano. Perdida a linha familiar das ruas, só os aromas lhe diziam que sim, que aquela era a mesma cidade que ele julgava conhecer.

 

Parou, encostando-se às colunas de S. Domingos. O trajecto entre sua casa e a loja de Tchang era curto, mas nunca lhe parecera tão longo. Parara porque necessitava de se preparar. Não sabia o que poderia esperar daquela celebração. Tchang e Liang, que lhe pareciam tão familiares, poderiam parecer-lhe tão estranhos como estranhas lhe pareciam agora as ruas e a cidade.

 

Inquietou-se. Levou as mãos aos bolsos, verificando os pequenos presentes. Ficou inseguro. Sentir-se-iam insultados por eles? Imaginava o seu ar constrangido e embaraçado quando duas figurinhas se aproximaram, ondulando entre a multidão. Faziam lentas e respeitosas vénias, sorrindo levemente. Ao fundo, atrás delas, estava Tchang, também sorridente. Aguardavam-no, já. À porta de casa, em sinal de cerimonioso respeito.

 

Então ele, um estranho, um estrangeiro naquela cultura, endireitou-se e dirigiu-se, também sorridente, em direcção a Tchang, enquanto as frágeis figurinhas iam abrindo caminho. Pareciam ter a dignidade de duas pequenas esculturas animadas, duas esculturinhas Fu, saídas de alguma grande casa senhorial. 

 

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Brito Pais e Sarmento de Beires

blogdaruanove, 07.04.09

 

Os aviadores portugueses Brito Pais (1884-1934) e Sarmento de Beires (1892-1974).

Bilhete postal editado em 1924.

 

Os majores Brito Pais e Sarmento de Beires já haviam efectuado em 1920 um ensaio de viagem aérea à Madeira, mas foi a sua viagem até Macau, realizada em 1924, que os consagrou na história da aviação.

 

Partindo de Vila Nova de Milfontes em 7 de Abril, os pilotos sobrevoaram Macau na última semana de Junho, tendo acabado por aterrar de emergência numa localidade vizinha, devido ao  mau tempo.

 

A viagem aérea foi realizada em dois aparelhos.

 

Inicialmente utilizou-se um Breguet 16 Bn-2 (companhia activa entre 1911 e 1971, ano em que se fundiu com a Dassault [fundada em 1930 e ainda em actividade]), adaptado e com um motor Renault de 300 cv., adquirido por subscrição pública e baptizado com o nome Pátria. Este aparelho partiu de Portugal com os dois pilotos mencionados, aos quais se juntou posteriormente o alferes mecânico Manuel Gouveia (datas desconhecidas), já em Tunes, na Tunísia.
  

Estes três tripulantes chegaram ao deserto de Thur, na Índia, onde o aparelho acabou por aterrar com danos irreparáveis. Perante o contratempo, e considerando a façanha já realizada, o governo português autorizou a compra de um outro avião. A viagem prosseguiu então num Havilland Liberty DH9 (companhia activa entre 1920 e 1964), de 400 cv., adquirido na Índia e baptizado como Pátria II. Devido à reduzida lotação, Manuel Gouveia acabou por não embarcar neste aparelho.

 

A travessia aérea foi assim concluída com apenas dois tripulantes, Brito Pais e Sarmento de Beires, os quais percorreram mais de 16.000 kms. e voaram mais de 115 horas entre Vila Nova de Milfontes e Macau.

 

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Macau, 1937 (VI)

blogdaruanove, 30.03.09

 

Lá fora o barulho das celebrações continuava. A multidão percorria as ruas em êxtase, numa alegria inconcebível para a maior parte dos chineses noutros dias, sem saber muito bem para onde ia, nem porquê. Muitas pessoas pareciam andar pelas ruas sem destino. Tal como ele parecia divagar sem qualquer finalidade.

 

Teria que se levantar e sair, para honrar a promessa feita a Liang e agradecer a hospitalidade de Tchang. Mas o esforço parecia-lhe enorme. Levantar-se. Convencer-se que teria de movimentar o corpo, que teria de conviver com outras pessoas... Parecia-lhe inútil a conjugação de todo aquele esforço. Sentiu-se tão minúsculo como um netsuke. Encerrado na caixa de segredo que lhe haviam oferecido, era um daymio erecto, de madeira dura, mas sem espada. Um daymio que se fundia com o labirinto de madeira perfumada e macia da caixa, diluindo-se nos aromas que dela se evolavam...

 

Ergueu-se. Caminhou para as janelas e abriu as gelosias de cima, de par em par. Deixou que a luz o magoasse, entrando-lhe pelos olhos bem abertos. Olhou para as ruas, para  a multidão, para o mar, deixando-se penetrar pela luz e pelo ruído. "Em que estás a pensar?" Sorriu. "There are more things, Horatio..." Shakespeare recordado e treslido, um sonho de uma noite de verão num fim de tarde oriental. Sentir e recordar era melhor que pensar.

 

Sentiu vontade de se perder na multidão, de ser levado sem destino por aquela torrente.

 

Irreflectidamente, despiu-se e ficou na penumbra, sentindo a aragem que vinha da rua. Esteve assim breves momentos, até sentir a pele arrepiada. Lavou-se depois com água tépida. Fez a barba uma e outra vez, escanhoando-se aqui e ali. Afinal, era Ano Novo. O seu primeiro Ano Novo Chinês!

 

Surpreendeu-se com o murmúrio cantarolado que lhe ia saindo das narinas. Viu no espelho o esboço de um sorriso de satisfação. Afinal estava contente...

 

Vestiu-se e precipitou-se para as escadas, descendo ritmadamente os degraus, de dois em dois, e voltando às vezes atrás, como se estivesse a ensaiar um passo de dança.

 

Entrou na rua como se aquele fosse o seu mundo e nunca tivesse estado em nenhum outro sítio. Aquele era o seu mundo, aquela era a sua vida. Ninguém mais a poderia viver, ninguém mais a poderia sentir.

 

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Macau, 1937 (V)

blogdaruanove, 09.02.09

Macau, cerca de 1937.

 

(continuação de http://ilusoesurbanas.blogs.sapo.pt/13730.html)

 

Deitou-se novamente, atravessando-se na cama. A visão familiar da ventoinha alinhada com os seus olhos parecia-lhe agora inquietante. Perplexo com esta impressão contraditória, levantou-se para ligar o interruptor. Alongou-se depois desde a cabeceira até aos pés da cama, de olhos abertos, deixando-se hipnotizar pela monótona sonoridade do motor e pelo movimento quase imperceptível da hélice. Ficou assim durante alguns momentos, alheado de tudo, concentrado apenas naquele zunido circular. Ficou assim, sem pensar em nada.

 

"Em que estás a pensar?", perguntavam-lhe em rapaz, quando o viam alheado. "Em nada", respondia. "Em nada?", perguntavam com expressão de surpresa e desdém, "Como é possível pensar em nada?" E tinham razão. Ao fim de algum tempo acabava sempre por pensar... em algo.

 

Muitas vezes, aquilo em que pensava acabava por ser um rememorar do que não fizera, ou do que não dissera, e deveria ter dito, ou feito. Uma deve e haver desequilibrado, em que sempre ficava a dever ao passado e àquilo que não havia feito, ficando sempre em dívida para consigo mesmo.

 

Voltou a pensar em Boubouka. Teria gostado mesmo dela? Teria ela gostado dele, apesar daquele seu desapego, tão invulgar nas mulheres latinas? Tinham sido um do outro, como se nenhum deles quisesse ser dono do outro. Não tinham havido promessas nem compromissos... Mas então, por que lhe teria ficado aquele sentimento de desamparo e aquela sensação de promessa por cumprir?

 

Parecia-lhe que os movimentos da ventoinha apenas acentuavam a circularidade da sua própria reflexão, cercando-o, imobilizando-o e trazendo-o de volta ao ponto de partida.

 

Fechou os olhos, tentando desistir de ver ou de pensar.

 

"Em que estás a pensar?"

 

"Não estou a pensar, estou apenas a sentir."

 

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