Mosteiro da Batalha
Gravura inglesa publicada em 1838.
"Comecei a divisar por entre os álamos da estrada as agulhas da 'Batalha' ao cair da tarde [de Julho], já quando o sol arrefecido pouco mais era do que uma braza a extinguir-se em ténue poeira de cinzas avermelhadas. Pouco depois, alumiado por esta claridade prestigiosa, que lhe deixava a base envolta em fulvas penumbras, levantava-se o monumento no mais encantador dos seus aspectos, sôltas pelas abóbadas, presas nos cardos dos espigões, cingidas às arestas dos muros, as rendas de pedra que o enfeitam. A luz do sol poente inflamava essas rendas, recortando lhes [sic] os desenhos em fundos esmaltados: matiz de ouro sôbre ouro, frágeis relevos preciosos, subtilizados por mudanças sucessivas de efeitos fulgurantes...
Não me puz a desembainhar estoques de crítico para retalhar convenientemente a sensação recebida: contemplei emquanto [sic] durou o crepúsculo e depois sopeei a impaciência na leitura dos 'Lusíadas', esperando a hora em que, alta já a lua, o sacristão iria mostrar-me os claustros.
Levantou-se a lua pelas transparências esverdeadas do horizonte que parecia recuar lentamente, já cêrca da meia noite, no absoluto silêncio onde tudo caíra em redor do povoado. Aguardara a aparição da luz fantasmática no alto de uma colina que melhor vista dá sôbre o monumento: sombra mossiça [sic] ouriçada de sombras agudas, tomando à claridade incerta das estrêlas relevos de um instante, logo absorvidos por outras sombras mais vagas. O luar bafejou o grande corocheu de poeira alvacenta, como o primeiro, frio reflexo da aurora, mas prontamente se fêz opalino e mais penetrante, insinuando-se nos lavores das agulhas, dos lírios de pedra que ameiam as cornijas, nas teias de frisos que arripiam a superfície das paredes e mergulhando, por fim, na tinta opaca em que se condensava o interior dos claustros, libertou das trevas tôda aquela maravilha e como que a refundiu em espumas de prata fina...
Em noites tais a vista não se detem na rude forma natural das coisas, mas passa-as à alma que as transfigura e, luar ainda mais doce, mais fecundo, mais íntimo, as devolve, repassadas de poesia, puras subjectivações, enlevo de imaginação, orgulho do pensamento..."
in Manuel Teixeira Gomes (1860-1941), Cartas sem Moral Nenhuma (1904; 3.ª edição, 1934, pp. 124-126).
© Rua Onze . Blog