Autógrafos - António Damião
António Damião (n. 1941), Na Boca da Infância (1988).
Capa de Henrique Cayatte (n. 1957).
Essencialmente associado ao chamado romance policial através do seu pseudónimo Henrique Nicolau, sob o qual publicou diversos livros, o primeiro deles, O Trabalho é Sagrado, galardoado com o Prémio Caminho de Literatura Policial de 1985, António Damião apresenta-nos aqui uma obra singular no seu percurso de escritor.
Singular porque, embora desague numa literatura de memórias da infância e da adolescência como a de Altino do Tojal (n. 1939) e Diniz Machado (1930-2008), apresenta um discurso de narrativa aberta e sem enredo centrado num fio condutor clássico, transpondo a espontaneidade da memória e da oralidade, e a sucessiva alternância de personagens, para o desenrolar da narrativa.
Singular também porque é a sua única obra deste género numa produção literária cuja expressão editorial se limita, até agora, aos anos que medeiam entre 1985 e 1993.
Deste discurso memorialístico, transcrevem-se cinco parágrafos.
"O Rafael Lingrinhas sabia coisas à brava sobre mulheres. Até sabia os truques que elas usavam quando queriam secretas e especiais carícias. 'Temos de tar sempre a pau com elas, é pessoal de muito saber!' Era um tipo tramado, andava com uma maltosa de respeito e não ligava a ninguém, fazia sempre e só o que lhe apetecia. Então depois da cena com os polícias ficou famoso.
'Eh, pá!, até tava a ver os putos a jogar à bola no largo quando os chuis vieram. Pelos meus dois se não é verdade. Tava encostado à parede e deixei-me ficar. Mal os gajos apareceram os putos pisgaram-se. Os cabrões ficaram lixados de não terem apanhado nenhum e vieram marrar comigo. Deixei correr o marfim porque não tinha nada a ver com aquilo. Vai daí, sem mais aquelas, um sacana deitou-me os gadunhos. Esse levou com uma cabeçada naquelas fuças que ficou logo c'as trombas à Benfica. Ao outro filho da puta que vinha de lado, ferrei-lhe um pontapé nos tomates que o dobrou em dois. Só qu'eu não tinha visto qu'havia mais dois. Esses vieram logo com cassetetes. A primeira ainda a aparei no braço, qu'esta merda é qu'ainda me dói, o outro acertou-me em cheio no toutiço qu'até fiquei zonzo e aí é qu'os filhos dum cabrão me caíram todos em cima à uma. Porra, tamém eram quatro! Memassim, a dois marquei-os. Um, quando olhar prò espelho, há-de se lembrar cá do rapaz. E o outro, tesão pra que te quero, qu'eu sei qu'o gajo foi operado e ficou desenganado dos médicos. Disse-me o Juca, qu'o pai é enfermeiro e ouviu os médicos dizerem qu'o chui agora fica picha fria. É pra que saiba que biqueiranço cá do menino não é fofo pra setim. O que me safou foi o meu tio, qué um granjola lá na Legião, é um manda-chuva do caneco, e pôs a canzoada em sentido, senão os gajos enfiavam-me na Tutoria e eu alancava até ir prà tropa qu'era um descanso. Livrei-me de boa, livrei!...'
Rafael Lingrinhas ficou herói até a malta se lembrar. Só quem lhe fazia má cara era o marido da Leocádia peixeira, que até mudava de passeio quando o via.
'O corno é manso. Um dia vinha a sair de casa dele, depois de ter despejado na mulher, o esperto topa-me e pergunta-me o qu'é qu'eu andava por ali a farejar. Amandei-lhe logo: ando a dar uso à canastra qu'o teu carapau tá podre. O gajo cresce para mim e eu toma: vê lá s'amansas qu'eu hoje não trago muleta e posso fazer aqui um chinfrim qu'até mete inteligente, chocas para te meterem no curro e tudo. Xô!, quietinho qu'ind'é melhor. Como na tua gamela quando quero e m'apetece e tu bicuaite qu'é pra isto não dar festa brava com cartazes e tudo. Eh pá, só queria que vocês vissem! O cabrão ficou tão mansinho qu'era um desgosto vê-lo. Palavra qu'até tive dó dele. Chiça qu'é de mais, tamém é preciso ser muita merdas! Memassim, qualquer dia deixo aquilo. Já ando à coca dum material mais prò fino, do baril. Uma chavala aí mais do sério. É qu'o cheiro a peixe da gaja já m'anda a chatear. Enjoa-me, caraças!'
O Rafael Lingrinhas estava a apaixonar-se. Deu-lhe tão forte e feio, que um dia a malta ficou toda banzada quando o viu passar janota a preceito, de lancheira na mão, numa de trabalhador honesto e competente."
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