Autógrafos - Helena Marques
Helena Marques (n. 1935), Terceiras Pessoas (1998).
Desenvolvendo uma narrativa que continua a voz e o universo feminino de romances anteriores, Helena Marques retrata desta vez um conjunto de personagens que convergem para um mundo rural onde quase desapareceram, ou se diluíram, os laços de parentesco entre família, cedendo lugar a laços de afectividade e afinidade.
Se em Cais de Pedra (1992), a mulher do século XIX era o contraponto sedentário ao nomadismo masculino, aqui, com a personagem Natália, a mulher do final do século XX surge como o contraponto a essa passividade feminina, a essa submissão à casa e à família, transformando-se num alter ego feminino de Ulisses.
Deslocando-se entre as várias cidades e os vários países para onde a sua profissão a leva, Natália desloca-se para fora de uma sujeição feminina de séculos, viajando à procura de si própria e à procura daquilo que, afinal, apenas se encontra no interior de cada um de nós.
A natureza da família, da sua coesão e da sua desintegração, é uma das questões principais da narrativa. Consanguinidade, afectividade e afinidades entrecruzam-se, aproximam-se e afastam-se ao longo do enredo, na demanda daquilo que poderá contribuir para estabelecer uma nova definição dos laços de família no mundo contemporâneo.
Deste romance transcrevem-se dois parágrafos:
"Há horas, como esta, feitas para o silêncio, pensa Sofia, seria insuportável se o João Bernardo quisesse conversar agora, falar dos filhos ou do concerto de Brahms que nos chega da sala, mas o João Bernardo nunca o faria, ele sabe usar o silêncio como um laço, uma cumplicidade, uma fronteira que define o nosso espaço. Sem surpresa, num aconchego de pele e espírito, sente o abraço dele a guardá-la e logo tudo fica sereno e certo, o quarto crescente no céu de Maio, a casa no círculo das faias, eles dois juntos naquele acaso que a trouxera até ali, até à Casa da Azenha, até a este homem que logo a quisera, que ela logo quisera, e que, contudo, não precisa dela – nunca precisará realmente dela.
Compreende, então, a razão dos seus vagos mas persistentes temores e apercebe-se de que uma das expressões mais viscerais do amor-próprio reside na obsessiva necessidade de ser tudo para alguém, não basta saber-se amado e desejado, é preciso saber-se imprescindível, insubstituível, pão, oxigénio e vida. E João Bernardo não precisa dela, amá-la-á enquanto estiver por perto mas nunca a reterá se quiser partir, como não reteve Natália, terá alguma saudade, por certo, alguma nostalgia das suas noites, dos passeios ao longo do rio, das emoções e dos risos, mas nada abalará profundamente nem o seu corpo nem a sua alma, nada voltará a abalá-los. E no entanto sente-se amada e satisfeita no jogo de liberdades e afastamentos que partilham desde o primeiro dia."
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